segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Parece cocaína, mas é só tristeza

O fato era admirável. O consumo de si mesmo, a eterna busca por uma cura, o desejo fugaz de se ver completo. Em vão. Pobre misantropia era aquela que subia nas veias tirando aquela vida vazia que o alimentava todos os dias. Vida vã, como as do século XXI. Vidas televisivas, vidas flácidas, vidas homofóbicas. Vidas de fobia, vidas de acre e agridoce, vidas amargas. Essa misantropia e esse autismo opcional não fazem de alguém uma pedra no meio do caminho. Essas vidas desprezíveis de oblação não religiosa, de suspiros banais e roupas que ardem os olhos não agradam a minha acidez espiritual.

Os venenos já não são mais tão lentos, as drogas são rápidas, os cigarros são mais curtos, as conversas mais chatas, os olhos mais escuros, os beijos mais superficiais, os gestos são macabros e irreais. A tecnologia engoliu o homem, e ele se agrada por isso. Os fantasmas dentro de cada um andam vencendo, os desejos e as entregas estão mais clichês e a criação perdeu o DNA. Tudo é copiado, tudo é mal feito, tudo é uma nota de dinheiro, na cor que quiser, no idioma que quiser. Os amigos são aos milhões, os discípulos escolhem seus mestres na sarjeta e o Clássico se tornou algo empoeirado como um relógio de pêndulo quebrado.

Imobilidade. Blasfêmias. Mentiras fáceis. Amor de aluguel. Cafés com vodka. James Dean está morto. Ninguém mais lê James Joyce. Beatles é alternative. Hippie é moda. Johnny Cash é antiquado e Elvis é velhote com strass. Pin up é usar roupas da vovó e ser sexy. Números são sentimentos. Marilyn Monroe é uma diva adolescente clichê. Cigarro é status. Preto é gótico. Coco Chanel é vovó de calças. Ninguém mais gosta de Victor Hugo. Beethoven toca no caminhão de gás e Vivaldi é abertura de novela. Revoltas juvenis são presentes apenas em livros de História. Hitler se matou e os soviéticos não querem tomar o mundo. Se você for a São Francisco não encontrará pessoas com flores no cabelo. Che é ideologia, Fidel é um velhote. Os martírios ficaram sem graça e os Van Goghs sem cor. Da Vinci apodrece no sóton junto com Françis Bacon, Manet e Degas. Vidas vazias.
E há tempos são os jovens que adoecem.

Maldita

A noite daquele fim de dezembro italiano era funda, fria, fascista.
— Você não merece nada mais que meio cálice de vinho, mulher.
— A vida é mais que isso, querido.
— Mas você não é mais que nada.
Ele aproximou-se dela, agora frente a frente. Ele, semi vestido com as calças de braguilha aberta e ela com um suave robe de seda chinesa transparente, que não deixava muito à imaginação. A mulher estava de pernas cruzadas, sentada à beira de uma mesa de sinuca, degustando um cigarro nos lábios rubros já pela metade, atravessando o homem com seu sarcasmo pós-orgástico.
— Como se você fosse alguma coisa, Wanz.
O alemão lacrou-se em uma luta contra sua raiva e princípios. A visão do seio desnudo e em estado natural de beleza o distraiu. Como ela podia fazê-lo perder o foco e maneira tão fácil... com aquele cabelo que ele nunca soube se era negro ou vermelho, tudo dependia da luz, e a boca, o corpo curvilíneo de uma diva... Que armas tinha contra ela além da virilidade? Quantas mulheres mais o mundo havia de esconder nas catacumbas do amor, sarcófagos da luxúria e rios do yin-yang fluído? Se a denominação do sexo feminino tivesse um nome secundário, seria perigo.
— Ah, mulher maldita. Essa Eva tinha que cair bem no meu jardim? — Ele apoiou as duas mãos nas bordas da mesa, cercando a mulher. — nunca serei capaz de descobrir o que você tem na alma, mas isso não significa que não vou tentar. Mesmo que morra... frustrado. — Ela abandonou o cigarro, molhou a boca com os restos de um doze anos que estava por ali enquanto ele falava e passou os dedos longos pelos cabelos claros do alemão. Ele fechou os olhos. — Ah... maldita.
Como a luz ali era pouquíssima, oriunda de uma lâmpada vacilante que piscava de tempo em tempo, mal se podia ver o sorriso malicioso que se desenhou na face da mulher. Ela emanava lascívia, como um pedaço de pecado diluído no conhaque do vigor. Colocou a ponta afiada das unhas no lábio superior do homem, descendo ainda para o pescoço com mais intensidade.
— Maldita. — ele disse, ainda com os olhos fechados. Gostava desses jogos. Então ela aproximou mais e apoiou a cabeça no peito nu dele, com a mão pelo abdome, mas não demais, afinal os homens eram tão fáceis de agradar... — Mil vezes maldita.
Colou os lábios no peito, sentindo o frescor da colônia que vinha da pele dele, junto com o suor doce, naquela combinação que só ele tinha.
— Ah, Wanz. Você não sabe das coisas. Você não sabe de nada. — desceu arranhando, e ficou contornando o umbigo do russo com o dedo indicador, ora descendo e subindo, em um jogo só dela. — Você só sabe existir.
Ele abriu os olhos e fitou-a, com uma expressão divertida.
— Eu sei ter você.
Ela sorriu.
— Ninguém tem a mim, querido. — fatal, desceu a mão a apertou o rijo objetivo final, gostando de ver a expressão de surpreso prazer nele.
— Não? Continue assim que eu te roubo para mim.
— Impossível.
— Querida, nada é impossível.
— Você me chamou de querida, isso é impossível de ter um sentimento real.
— Ah, eu te chamo do que quiser, maldita.

Com uma das mãos, ele puxou-a contra seu peito, e apertou a cintura da mulher, prendendo-a em uma armadilha. Passou o queixo mal barbeado contra a pele macia do pescoço dela, deslizando uma vez e duas, até os lábios de se encontrarem em um beijo intenso interrompido por mordidas ladinas no lábio inferior, enquanto ele já tratava de deixar o robe dela cair pelo ombro.
— Judia maldita.
— Nazista vil.
O alemão jogou-a sobre a mesa e ali a fez sua mais uma vez naquela noite. Em um canto repousava o amontoado de roupas, entre eles o espartilho e a braçadeira vermelha com o símbolo do mal naqueles tempos. Eras e eras passariam e os homens nunca seriam fieis a suas ideologias, se o elo mais fraco da corrente se partisse em uma luta no subconsciente contra algo que era induzido, mas que não concordava no íntimo. Assim como Wanz, mesmo sendo nazista, era capaz de amar uma judia na calada da noite em um bar abandonado. No final, as máscaras e maquiagem, suásticas e quipás, violinos e facas caem perto de um amor noturno e impossível quanto rápido.
Os fogos de artifício rasgaram o céu, iluminando o bar traves da janelinha alta e tocando o suor das costas largas do alemão e parte do cabelo da italiana contra o tecido verde da mesa de jogos. Mas eles não ouviram nada além dos suspiros mútuos e palavras sussurradas.
— Maldita...

Feliz ano novo, Itália. 1940.